Concebido para ser um dos mais incríveis carros esporte do século XX, o DeLorean DMC-12 teve produção reduzida e tornou-se um verdadeira raridade sobre rodas
Por: Rogério Ferraresi
Fotos: Bruno Guerreiro
Matéria originalmente publica em Rod & Custom 20. Complete a sua coleção: http://www.lojastreetcustoms.com.br/revistas-rod-custom/revista-rodandcustom-20.html
Você abandonaria uma grande multinacional, com todas as regalias de grande executivo, prestes a se tornar vice presidente, para abrir uma empresa própria, correndo todos os riscos de um novo empreendimento? Pois foi o que fez John Zachary DeLorean (ver box) no início dos anos 70, tornando-se o protagonista de um dos mais interessantes capítulos da industria automobilística mundial. A DeLorean Motor Company, conhecida pela sigla DMC, foi fundada a 24 de outubro de 1975, em Detroit, Michigan. Tinha como investidores o Bank of América, Johnny Carson e Sammy Davis Jr. (amigos pessoais de Zachary). O intuito era fabricar um carro esporte “ético”, seguro e “ecologicamente correto” que “Poderá ser dirigido por 20 ou 25 anos e nada deverá ocorrer com ele, pois não será projetado para a obsolescência precoce”.
O protótipo ficou pronto em março do ano seguinte. Seu
projetista foi William T. Collins, antigo engenheiro chefe e designer da
Pontiac. Deveria ter motor Wankel Citroën, propulsor que, criado por Felix
Wankel, ao contrário dos motores convencionais, baseava-se em uma estrutura de
movimentos epicicloidais de um rotor trilobular sobre um eixo. O rotor, um
triângulo com as faces abauladas, girava no interior de uma carcaça oca com
forma ovalada. Collins e Zachary imaginavam utilizar-se de uma nova tecnologia
denominada ERM (Elastic Reservoir Moulding ou Moldagem em Reservatório
Elástico), cujo direito de uso foi adquirido: duas camadas de espuma plástica
eram comprimidas contra uma camada de espuma central e, quando o material
atingisse a espessura de 4 mm, se tornaria um painel leve, duro e
resistente.
O desenho da carroceria foi encomendado a Ital Design,do
estilista Giorgetto Giugiaro, que já havia trabalhado para as marcas De Tomaso,
Maserati, Iso e Lotus. Foi estipulado que todos os painéis externos seriam
feitos em aço inox SS304, podendo ser substituídos por peças novas em caso de
acidentes. Os painéis seriam fixados na armação da carroceria com resina de
poliéster. As portas do tipo asa de gaivota, devido aos painéis de inox, seriam
pesadas, Assim, utilizariam amortecedores a gás e barras de torção, tudo
desenvolvido pela indústria aeronáutica Grumman Aerospace. O uso do inox e as
portas foram, em termos de marketing, uma decisão acertada, mas, do ponto de
vista técnico, traduziram-se em um verdadeiro pesadelo de engenharia, pois fazer
um protótipo é diferente de iniciar a produção em série e o executivo não iria
contar, em sua empresa, com os recursos da GM, com os quais já estava
acostumado.
A maior prova de que o otimismo era exagerado foi o fato do uso do ERM ter se mostrando inadequada para uma fábrica pequena: seus moldes de compressão teriam de ser tão precisos e caros quanto as prensas utilizadas na fabricação de carrocerias de chapas de aço. Assim, empregou-se uma estrutura feita de plástico reforçado com fibra de vidro pelo processo VARI (vacuum assisted resi injection, ou injeção de resina assistida a vácuo). O conjunto de motor e câmbio automático seria central traseiro, colaborando com a distribuição de pesos e o comportamento dinâmico. Porém, o Wankel, tecnicamente interessante, já havia sido utilizado sem sucesso em carros das marcas NSU, Mazda e da possível fornecedora Citroën (equipando os Ami 6 e GS Bimotor). A durabilidade dos rotores e o alto consumo de combustível (especialmente após o advento da crise do petróleo) obrigaram o empresário a desistir do mesmo em favor do PRV V6, criado, produzido e utilizado, entre 1974 e 1988, por uma joint venture da qual faziam parte Peugeot, Renault e Volvo.
Feito em alumínio, o PRV V6 tinha diâmetro e curso de 91 mm x
73 mm, com deslocamento de 2.850 cm3 e, na versão americana, apresentava taxa de
compressão de 8,8:1 e sistema de injeção eletrônica Bosch K-Jetronic,
desenvolvendo 130 cv a 5.500 rpm. O transeixo seria o mesmo dos Renault 30 e
Peugeot 604 e previa-se o emprego de um câmbio manual de cinco marchas. Não
seria possível utilizar o PRV V6 no chassi de motor central e Zachary, após
consultar Jessen, Aston Martim e Porsche, contratou a Lotus para desenvolver uma
nova estrutura. A Porsche, que tinha tradição em motores traseiros, foi
descartada porque pediu dois anos para dedicar-se ao projeto, enquanto Colin
Chapman se comprometeu a resolver tudo em 18 meses. O veículo passou a contar
com chassi de forquilha dupla e espinha dorsal tipo Lótus e suspensões McPherson
“Chapman Strunt”, sendo em tudo ao Esprit. Direção hidráulica por pinhão e
cremalheira e freios a disco completavam o conjunto. A nova localização do motor
não perturbou Zachary, tendo em vista que o Porsche 911 usava uma concepção
semelhante, muito embora a mesma tivesse sido empregada no fracassado Chevrolet
Corvair.
“Nós recomendamos a transferência de tecnologia para
assegurar que se gastasse o menor tempo possível na parte de engenharia e
desenvolvimento”, explicou o engenheiro da Lotus, Mike Kimberley. A distribuição
de pesos era da ordem de 35% e 65% e, como este ficava concentrado na traseira,
ao invés dos Pirelli P7, optou-se por pneus radiais de aço Goodyear NCT mais
largos atrás (235 HR15, contra os dianteiros 195/60 HR14), evitando a saída de
traseira típica do Corvair e do 911. O desenho de Giugiaro se manteve
inalterado. Zachary necessitava de US$ 175 milhões para montar a fábrica, que
inicialmente seria em Porto Rico, território autônomo dos EUA. Logo em seguida a
Inglaterra e a Irlanda do Norte, através do ministro da Indústria e Comercio
irlandês, Desmond O'Malley, ofereceu 100 milhões de libras para que a planta
fosse erguida naquele país, que passava por grave crise social.
A DeLorean Motor Company fixou-se em Dunmurry, subúrbio de Belfast com população protestante. Os seis prédios ocupavam uma área de 61 mil m2 e começaram a ser erguidos em outubro de 1978. Como havia muito desemprego na região, inúmeros irlandeses compareciam em busca de uma vaga e, para completar a confusão, Dunmurry ficava próxima de Twinbrook, de população católica. Devido à agitação social da época, o início da produção, previsto para 1979, só teve início no ano seguinte, sendo a primeira unidade finalizada em 21 de janeiro. A garantia era de 12 meses e 12 mil milhas (19,3 mil km) e havia um plano opcional, valido por cinco anos ou 50 mil milhas (80 mil km).
O carro começava a nascer com o corte das mantas de fibra de
vidro, feita por máquina elétrica suspensa no teto da fábrica. As peças cortadas
iam para a forma fêmea, depois completadas com a forma macho e só então, em
estado de vácuo parcial, injetava-se a resina sob pressão. Os primeiros veículos
usavam resina translúcida, dando a impressão, devido à passagem de luz entre os
painéis de inox, que o esportivo era oco. Esse problema foi resolvido com a
adição de um corante na resina.
De um jogo de moldes saia a parte superior da carroceria e, de outro, a inferior. A quantidade de rebarbas era mínima e não havia a formação de bolhas de ar. Painéis de encaixe espumados uniam as partes que, constituindo um só conjunto, era montado no chassi. As portas tinham suas barras de torção testadas uma a uma em laboratório, sob condições criogênicas. Os painéis metálicos eram tratados por escovadeiras elétricas em sentido horizontal longitudinal (foi o primeiro carro produzido em série sem pintura), impedindo que o metal refletisse a luz como uma superfície cromada. O produto resultante, denominado DMC-12 (sendo o numeral utilizado por causa do preço estipulado em US$12 mil) tinha 4,5 metros de comprimento e 1,85 metros de largura (dois centímetros a mais que um Dodge Dart).
Havia duas especificações, sendo uma, devido à legislação,
específica dos EUA. Era mais pesada e mais alta que o normal, o que afetou o
desempenho e o comportamento do carro, fazendo muitos providenciarem alterações
para que o esportivo voltasse a sua concepção “original”. Não existia a
diferenciação por ano/modelo. As mudanças iam sendo realizadas conforme fosse
necessário. Foi o caso, em fins de 1981, da troca do alternador Ducellier por
outro da Motorola, e isso devido a uma reclamação de Johnny Carson: a bateria de
seu DMC-12 descarregou na estrada logo após a entrega do carro. A mão de obra
irlandesa não era especializada. Isso causou diversos problemas, caso da
montagem incorreta dos painéis de aço, refeita nos EUA pelos revendedores. Tudo
isso fez o preço do DMC-12 saltar para US$ 25 mil, o que dificultou as vendas.
Zachary havia calculado que seria necessário comercializar 10 mil carros/ano,
mas só estava conseguindo colocar no mercado pouco mais da metade disso.
Ainda em 1981 a American Express fez um acordo para o
fornecimento de 100 unidades com os painéis de aço banhados a ouro, que seriam
vendidas aos clientes da companhia financeira, mas só três carros foram feitos.
No mesmo ano divulgou-se uma versão de quatro portas para 1983, mas a fabrica
estava passando por sérias dificuldades. Zachary procurou o governo britânico e
este só concordou em ajudar caso também fosse obtido auxílio do capital privado.
Para complicar ainda mais sua situação, o empresário foi acusado de traficar
cocaína em seus carros. Seguiu-se uma investigação e Zachary acabou inocentado,
mas quando isso ocorreu sua fábrica já havia falido.
Parecia que a história da DeLorean estava encerrada, mas, em
1984, a Universal Pictures começou a rodar “De Volta Para O Futuro” (Back to the
Future). O filme foi lançado no ano seguinte e, além de Michael J. Fox e
Christopher Lloyd, tinha um DMC-12 como astro principal, que era convertido em
uma máquina movida a plutônio e capaz de desenvolver 1,21 gigawats de energia
através de seu fluxo capacitor, viajando no tempo após atingir 88 mph. Dirigido
por Robert Zemeckis e produzido por Steven Spielberg, o filme teve duas
continuações, rodadas em 1989 e 1990, colaborando para tornar o DMC-12 objeto de
culto em todo o planeta. Seis deles foram empregados na trilogia, aos quais foi
acrescida uma replica em fibra de vidro para as cenas de voo. Uma unidade foi
despedaçada no terceiro filme, duas foram destruídas pela ação do tempo e outras
três ainda existem.
Algo em torno de 9200 DMC-12 foram produzidos, sendo um quinto fabricado em outubro de 1981. Cerca de mil unidades deixaram Dunmurry entre fevereiro e maio do ano seguinte, mas a Consolidated International foi a responsável pela montagem dos 100 últimos carros. Com os contratos ainda em vigência, houve um grande atrito entre os antigos revendedores e os proprietários: os empresários não queriam fazer os reparos acordados nas garantias, pois não eram mais reembolsados pelas peças e pelos serviços realizados. Em 1995 o texano Stephen Wynne comprou os direitos do uso do nome DMC, bem como parte do ferramental e o estoque de peças existente, passando a vender tais itens (bem como peças novas, feitas sob encomenda), além de restaurar os carros produzidos. Zachary declarou a sua própria falência (algo possível nos EUA) e perdeu seu imóvel de New Jersey, de 434 acres (1.76 km2) em março de 2000. Mas não desistiu de seu sonho, tendo projetado o novo DMC-2, para cuja fábrica procurou, sem êxito, novos investidores. Tentando contornar a situação, decidiu lançar um relógio com carcaça de aço inox injetado que levava seu nome, vendido por US$ 3,5 mil cada, mas acabou falecendo em 2005, antes de colocar o projeto em prática. Hoje existem cerca de 6.500 DMC-12, cuja marca ainda é forte, tanto que, em novembro do ano passado, Stephen fez um acordo com a Nike, que lançou um tênis especial com o nome DeLorean, do qual só foram feitas mil unidades com um preço de varejo de US$ 90,00.
John Zachary DeLorean
A história John Zachary DeLorean resultaria no roteiro de um grande filme. Filho de Zachary e Kathryn Pribak Delorean, nasceu em 6 de janeiro de 1925, em Detroit, Michigam. Seu pai, imigrante romeno, foi funcionário da Ford em Highland Park. A mãe, austríaca, era operaria da General Eletric. A pobreza da família, acrescida do alcoolismo e da violência do pai, acabou por resultar em divórcio. Mas Zachary conseguiu estudar engenharia industrial, cujo curso interrompeu, em 1943, devido ao serviço militar. Após a II Guerra Mundial, para ajudar a família, empregou-se na Chrysler. Graduou-se em engenharia em 1948 e, quatro anos depois, obteve o diploma do Chrysler Intitute e freqüentou a University of Michigan. Foi contratado pela Packard e aprimorou a transmissão automática Ultramatic. Quando a empresa fundiu-se com a Studebaker, passou a trabalhar para a GM. Na Pontiac, como assistente do engenheiro chefe Peter Estes e do diretor geral Seman “Bunkie” Knudsen, implantou diversos aperfeiçoamentos e foi responsável pelo lançamento, em 1964, do GTO, tido como o primeiro muscle car.
Independente disso, grandes organizações contam com um sistema corporativo que interfere negativamente no trabalho de gênios criativos. Assim, visto como “rebelde” dentro da GM, o executivo começou a diversificar seus investimentos, adquirindo cotas de times como San Diego Chargers e New York Yankees, o que o tornou popular e estreitou seus laços com celebridades de Hollywood. A GM teve diversos problemas no desenvolvimento e produção dos modelos 1970 da linha Chevrolet. Zachary foi encarregado de solucioná-los, obteve êxito e colaborou com o aumento das vendas, tornando-se ainda mais influente. O encarregaram do projeto do Chevrolet Vega, que deveria superar a concorrência dos modelos europeus. Entre as ações para viabilizar a produção estava a dispensa de 800 trabalhadores, incluindo inspetores de qualidade, o que causou diversas sabotagens. Isso se refletiu na qualidade do Vega, mas Zachary contornou a situação e passou a ser apontado como nome mais forte para assumir o cargo de vice presidente da GM, Porém, em 2 de abril de 1973, pediu demissão. Como reconhecimento por seu trabalho, recebeu uma concessionária Cadillac na Flórida, mas isso era pouco para ele, que começou os estudos para a implantação de sua própria fábrica.
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