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domingo, 13 de julho de 2014

CARCARÁ



O Carcará foi um carro aerodinâmico mandado fazer pela Vemag para estabelecer a primeira marca brasileira e sul-americana de velocidade sobre terra. Foi idéia do gerente de competições da fábrica, Jorge Lettry, para encerrar com chave de ouro as atividades do departamento de competição da fábrica e deixar algo valioso para a história da marca no Brasil.  A Vemag estava nos seus estertores e já estavam adiantadas as negociações de sua absorção pela Volkswagen, A marca de velocidade seria a última missão do departamento, que já itnha data para fechar, 30 de junho de 1966.



O Carcará tinha chassi tubular com motor traseiro-central e transeixo DKW envelopado por uma carroceria de alumínio bem aerodinâmica. O carro havia sido um monoposto de Fórmula Júnior construído por Chico Landi e Toni Bianco, na sua tentativa de lançar a categoria no Brasil, mas que fracassou, apenas duas ou três provas foram realizadas. Um dos pilotos da equipe Vemag, Bird Clemente, havia comprado o carro e, como não havia mais uso para ele, trocou-o na Vemag por um Belcar 0-km e um utilitário Candango usado.

Fórmula Júnior Landi-Bianco com motor e transeixo DKW no estande da Vemag, Salão do Automóvel de 1964

Uma vez que tinha o Fórmula Júnior guardado num canto do seu departamento, Lettry encomendou o desenho da carroceria ao estilista Anísio Campos e Rino Malzoni a construiu na sua fazenda em Matão, interior de São Paulo próximo a Araraquara. O peso não chegava a 500 kg.



O carro foi testado em Interlagos, onde se mostrou rápido e seguro. Não há dados de sua aerodinâmica, mas seu Cx devia ser um pouco inferior a 0,20, com área frontal muito pequena. Carro pintado de branco e decorado com o logotipo da Vemag, o nome Carcará e adesivos de patrocinadores, foi levado para o Rio de Janeiro para a tentativa de estabelecer a marca de velocidade. O dia estava marcado: quarta-feira 29 de junho de 1966 (o departamento fecharia no dia seguinte, lembre-se).

Teste em Interlagos, Marinho ao volante: tudo certo




O local escolhido por Lettry foi a então parte inicial da rodovia Rio-Santos, um trecho de reta desértico de cinco quilômetros, declividade zero, pista única, além de a pressão atmosférica padrão de 760 mm Hg por ser no nível do mar contibuir para máxima potência do motor. Esse trecho hoje está totalmente desenvolvido, é de pista dupla e se chama Av. das Américas, na Barra da Tijuca. A estrada seria fechada ao trânsito por algumas horas nos dias 28 e 29. Pilotaria o Carcará o principal piloto da Vemag, Mário César de Camargo Filho, mais conhecido por Marinho



O motor era DKW com cilindrada aumentada de 981 para 1.089 cm³  e que desenvolvia 105 cv a.5.800 rpm e 11,6 m·kgf a 5.000 rpm. Quarta marcha e diferencial eram os mais longos disponiveis – 0,91 e 4,375 – que, com os pneus traseiros 165-15 (dianteiros 155-15).resultava em 30,5 km/h por 1.000 rpm, curto demais. O motor ia bem a 7.000 rpm, mais que isso a potência despencava, mas mesmo assim ia a 7.400~7.500 rpm. Desse modo estimava-se  que atingisse perto de 230 km/h.




Nos primeiros testes, no dia 28, véspera da prova, surgiu um problema inesperado: instabilidade direcional ao chegar a 160 km/h. Correção, mínima que fosse, gerava um pêndulo que de amplitude crescente, difícil de neutralizar. Marinho fez um 360° em plena reta. Assutou-se, claro, e preocupou Lettry e todos os ali envolvidos, eu inclusive. O mais intrigante foi que em Interlagos o Carcará atingiu velocidade muito próxima a 200 km/h e nada de anormal foi observado pelo próprio Marinho. O que estaria causando essa instabilidade?



Para piorar o quadro de apreensão, todos nós que éramos ligados à marca conhecíamos bem a história da morte de Bernd Rosemeyer num Auto Union de recorde em 1938, quando uma lufada de vento na Autobahn Frankfurt-Darmstadt o fez perder o controle quando estava a 429 km/h. O clima estava tenso.



O mecânico-chefe Miguel Crispim então lembrou-se que na montagem do carro após a pintura perguntou a Lettry se era para instalar a barra estabilizadora dianteira (atrás não tinha). Lettry disse que não precisava, era só para andar na reta e, além disso, a barra pesava alguma coisa. E o carro foi para o Rio sem a barra estabilizadora.



Conhecedor de suspensão como poucos, Letty matou a charada: com a forte pressão aerodinâmica na frente, a ausência da barra aumentava a resposta de direção e induzia a instabilidade e o pêndulo. Só que o teste oficial seria no dia seguinte e não havia como pegar a barra na fábrica, trazê-la para o Rio e montá-la. Não dava tempo. E nem o teste podia ser adiado, tanto pelo lado DER-RJ, quanto pelo departamento de competição, que estava fechando as portas. Seria no dia 29 de junho ou nunca.



Lettry, com sua lógica, pensou: se era excesso de resposta, vamos diminuí-la. Como? Com pneus de menos resposta, diagonais em vez dos radiais Pirelli CF67. Eu estava com minha Vemaguet de serviço, já modelo 1967 e Lettry "requisitou" as rodas dianteiras da perua, que tinham pneus Pirelli Stelvio ST17 Spalla di Sicurezza, 5,60-15. Classificação de velocidade P, para 150 km/h.




Os técnicos de Pirelli presentes acharam a idéia uma temeridade, Marinho não se conformou. Chegou a telefonar para o Eng. Bernardini, o diretor técnico da Pirelli, que recomendou não andar com aqueles pneus à aquela velocidade. Diante da determinação de Lettry em não mudar de idéia, Marinho, receoso com razão, se recusou a pilotar o carro e voltou para São Paulo. Mas haveria a tentativa de recorde no dia seguinte, como fazer?



Lettry convidou o piloto paulista radicado no Rio de Janeiro Norman Casari, que era piloto de DKW, inclusive era ajudado pelo fábrica com motores e transeixos do departamento de competição. Norman aceitou e se dirigiu ao local na tarde do dia 28, sentou no carro e saiu. Passou pela barreira dos 160 km/h e nada aconteceu. Na volta, um pneu dianteiro descolou a banda de rodagem e foi preciso pegar o estepe da Vemaguet..O dia e o asfalto estavam quentes, apesar de ser inverno.

Norman Casari experimenta o Carcará

Para piorar, Normam sentiu o motor dar uma leve prendida, típica de pistão travando. Com prática de DKW, apertou logo a embreagem para o motor parar evitando estrago maior. O fato auspicioso era que o carro andava em linha reta sem problemas. Mas não havia motor de potência semelhante para substituição.

Alvorada do dia 29 de junho de 1966
O teste no dia seguinte seria de manhã bem cedo, 7h00, ar e asfalto ainda bem frios. Além disso, pelo regulamento de recordes da FIA, após percorrer um sentido (sempre dois, média das duas passagens) o competidor é obrigado a aguardar meia-hora antes do percurso de volta. Os pneus esfriariam naturalmente, mas, por segurança, Lettry determinou que as rodas dianteiras fossem retiradas e os pneus esfriados com água.

Miguel Crispim (esq. do carro) e Ítalo Antonangeli recolocam as rodas após tê-las esfriado com água

A marca foi estabelecida sem nenhum incidente, obtendo-se 214,477 km/h num sentido e 211,329 km/h em outro, média 212,903 km/h, com medição por sistema Omega com fotocélulas de passagem, cedido pela revista Quatro Rodas. O motor, por ter prendido um pistão, não passou de 7.000 rpm.

O Carcará em velocidade

Os Spalla de Sicurezza voltaram para Vemaguet, que usei até maio do ano seguinte, quando a devolvi à frota por me desligar da Vemag – para entrar de sócio numa concessionária Vemag, a Cota, no Rio de Janeiro, que era de Norman Casari e Mauro Sá Mota Filho e fora inaugurada exatamente no dia do recorde. Nove meses depois os irmãos Eduardo e Maurício Ribeiro.compravam a Cota e pouco mais tarde me ofereceriam sociedade para cuidar da assistência técnica. Mas essa é outra história.

Dia do recorde, inauguração da Cota. À esquerda, Antonio Casari, pai de Norman, e o próprio ao seu lado

Retirado de http://autoentusiastas.blogspot.com.br/2012/05/o-carcar.html

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