O Carcará foi um carro aerodinâmico mandado fazer pela Vemag para estabelecer a primeira marca brasileira e sul-americana de velocidade sobre terra. Foi idéia do gerente de competições da fábrica, Jorge Lettry, para encerrar com chave de ouro as atividades do departamento de competição da fábrica e deixar algo valioso para a história da marca no Brasil. A Vemag estava nos seus estertores e já estavam adiantadas as negociações de sua absorção pela Volkswagen, A marca de velocidade seria a última missão do departamento, que já itnha data para fechar, 30 de junho de 1966.
O Carcará tinha chassi tubular com motor
traseiro-central e transeixo DKW envelopado por uma carroceria de alumínio bem
aerodinâmica. O carro havia sido um monoposto de Fórmula Júnior construído por
Chico Landi e Toni Bianco, na sua tentativa de lançar a categoria no Brasil, mas
que fracassou, apenas duas ou três provas foram realizadas. Um dos pilotos da
equipe Vemag, Bird Clemente, havia comprado o carro e, como não havia mais uso
para ele, trocou-o na Vemag por um Belcar 0-km e um utilitário Candango
usado.
Fórmula Júnior Landi-Bianco com motor e transeixo DKW no estande da Vemag, Salão do Automóvel de 1964 |
Uma vez que tinha o Fórmula Júnior guardado num
canto do seu departamento, Lettry encomendou o desenho da carroceria ao
estilista Anísio Campos e Rino Malzoni a construiu na sua fazenda em Matão,
interior de São Paulo próximo a Araraquara. O peso não chegava a 500 kg.
O carro foi testado em Interlagos, onde se
mostrou rápido e seguro. Não há dados de sua aerodinâmica, mas seu Cx devia ser
um pouco inferior a 0,20, com área frontal muito pequena. Carro pintado de
branco e decorado com o logotipo da Vemag, o nome Carcará e adesivos de
patrocinadores, foi levado para o Rio de Janeiro para a tentativa de estabelecer
a marca de velocidade. O dia estava marcado: quarta-feira 29 de junho de 1966 (o
departamento fecharia no dia seguinte, lembre-se).
O local escolhido por Lettry foi a então parte
inicial da rodovia Rio-Santos, um trecho de reta desértico de cinco quilômetros,
declividade zero, pista única, além de a pressão atmosférica padrão de 760 mm Hg
por ser no nível do mar contibuir para máxima potência do motor. Esse trecho
hoje está totalmente desenvolvido, é de pista dupla e se chama Av. das Américas,
na Barra da Tijuca. A estrada seria fechada ao trânsito por algumas horas nos
dias 28 e 29. Pilotaria o Carcará o principal piloto da Vemag, Mário César de
Camargo Filho, mais conhecido por Marinho
O motor era DKW com cilindrada aumentada de 981
para 1.089 cm³ e que desenvolvia 105 cv a.5.800 rpm e 11,6 m·kgf a 5.000 rpm.
Quarta marcha e diferencial eram os mais longos disponiveis – 0,91 e 4,375 –
que, com os pneus traseiros 165-15 (dianteiros 155-15).resultava em 30,5 km/h
por 1.000 rpm, curto demais. O motor ia bem a 7.000 rpm, mais que isso a
potência despencava, mas mesmo assim ia a 7.400~7.500 rpm. Desse modo
estimava-se que atingisse perto de 230 km/h.
Nos primeiros testes, no dia 28, véspera da
prova, surgiu um problema inesperado: instabilidade direcional ao chegar a 160
km/h. Correção, mínima que fosse, gerava um pêndulo que de amplitude crescente,
difícil de neutralizar. Marinho fez um 360° em plena reta. Assutou-se, claro, e
preocupou Lettry e todos os ali envolvidos, eu inclusive. O mais intrigante foi
que em Interlagos o Carcará atingiu velocidade muito próxima a 200 km/h e nada
de anormal foi observado pelo próprio Marinho. O que estaria causando essa
instabilidade?
Para piorar o quadro de apreensão, todos nós
que éramos ligados à marca conhecíamos bem a história da morte de Bernd
Rosemeyer num Auto Union de recorde em 1938, quando uma lufada de vento na
Autobahn Frankfurt-Darmstadt o fez perder o controle quando estava a 429 km/h. O
clima estava tenso.
O mecânico-chefe Miguel Crispim então
lembrou-se que na montagem do carro após a pintura perguntou a Lettry se era
para instalar a barra estabilizadora dianteira (atrás não tinha). Lettry disse
que não precisava, era só para andar na reta e, além disso, a barra pesava
alguma coisa. E o carro foi para o Rio sem a barra estabilizadora.
Conhecedor de suspensão como poucos, Letty
matou a charada: com a forte pressão aerodinâmica na frente, a ausência da barra
aumentava a resposta de direção e induzia a instabilidade e o pêndulo. Só que o
teste oficial seria no dia seguinte e não havia como pegar a barra na fábrica,
trazê-la para o Rio e montá-la. Não dava tempo. E nem o teste podia ser adiado,
tanto pelo lado DER-RJ, quanto pelo departamento de competição, que estava
fechando as portas. Seria no dia 29 de junho ou nunca.
Lettry, com sua lógica, pensou: se era excesso
de resposta, vamos diminuí-la. Como? Com pneus de menos resposta, diagonais em
vez dos radiais Pirelli CF67. Eu estava com minha Vemaguet de serviço, já modelo
1967 e Lettry "requisitou" as rodas dianteiras da perua, que tinham pneus
Pirelli Stelvio ST17 Spalla di Sicurezza, 5,60-15. Classificação de velocidade
P, para 150 km/h.
Os técnicos de Pirelli presentes acharam a
idéia uma temeridade, Marinho não se conformou. Chegou a telefonar para o Eng.
Bernardini, o diretor técnico da Pirelli, que recomendou não andar com aqueles
pneus à aquela velocidade. Diante da determinação de Lettry em não mudar de
idéia, Marinho, receoso com razão, se recusou a pilotar o carro e voltou para
São Paulo. Mas haveria a tentativa de recorde no dia seguinte, como fazer?
Lettry convidou o piloto paulista radicado no
Rio de Janeiro Norman Casari, que era piloto de DKW, inclusive era ajudado pelo
fábrica com motores e transeixos do departamento de competição. Norman aceitou e
se dirigiu ao local na tarde do dia 28, sentou no carro e saiu. Passou pela
barreira dos 160 km/h e nada aconteceu. Na volta, um pneu dianteiro descolou a
banda de rodagem e foi preciso pegar o estepe da Vemaguet..O dia e o asfalto
estavam quentes, apesar de ser inverno.
Para piorar, Normam sentiu o motor dar uma leve
prendida, típica de pistão travando. Com prática de DKW, apertou logo a
embreagem para o motor parar evitando estrago maior. O fato auspicioso era que o
carro andava em linha reta sem problemas. Mas não havia motor de potência
semelhante para substituição.
Alvorada do dia 29 de junho de 1966 |
A marca foi estabelecida sem nenhum incidente,
obtendo-se 214,477 km/h num sentido e 211,329 km/h em outro, média 212,903 km/h,
com medição por sistema Omega com fotocélulas de passagem, cedido pela revista
Quatro Rodas. O motor, por ter prendido um pistão, não passou de 7.000
rpm.
Os Spalla de Sicurezza voltaram para Vemaguet,
que usei até maio do ano seguinte, quando a devolvi à frota por me desligar da
Vemag – para entrar de sócio numa concessionária Vemag, a Cota, no Rio de
Janeiro, que era de Norman Casari e Mauro Sá Mota Filho e fora inaugurada
exatamente no dia do recorde. Nove meses depois os irmãos Eduardo e Maurício
Ribeiro.compravam a Cota e pouco mais tarde me ofereceriam sociedade para cuidar
da assistência técnica. Mas essa é outra história.
Dia do recorde, inauguração
da Cota. À esquerda, Antonio Casari, pai de Norman, e o próprio ao seu
lado Retirado de http://autoentusiastas.blogspot.com.br/2012/05/o-carcar.html . |